terça-feira, 15 de setembro de 2009

O "Ter" das coisas

Encontrei-me casualmente comigo há dias.

Havia tempos que não me via. Estava sentado num penedo. Agachei-me e perguntei-me o que tinha. Olhei-me nos olhos... Não... O olhar estava parado, fixo num ponto de fuga, a quilómetros de distância. Respondi que não tinha nada, enquanto recordava os meus, que amo, e uma vida por acabar.

Olhei-me com o mesmo olhar vazio, sem emoção que classifique o bater do coração.

Tenho vindo a adequar o discurso, pela constatação clara de que já não importa o "ser" das coisas. Importa-lhes principalmente o "ter". Daí que o saber, aquela faixa estreita onde a crença e a verdade se sobrepõem, pouco importe; porque é relativo, muito relativo...

Às voltas com este transe... O sábio que antes invejámos ao afirmar "só sei que nada sei", demonstrando clareza sobre a enorme variedade de conhecimentos que houvesse para apreender, face à diminuta capacidade do Homem para tal grandeza, hoje é o que apregoa ao vento "só sei que nada tenho".

Por isso a inteligência se mede cada vez mais pelo sucesso, pelas influências apropriadas, do que por formas de pensar. Louco já não é o que se passou do juízo, que se designa, também em contra-senso, por "infeliz". Louco é o que vive sem nada, porque nada soube amealhar, esse sim temido e repudiado por todos.

Consequentemente tenho de admitir que "tenho, logo, existo". Deixo para trás o paralelismo em que a consciência do ser se relacionava com a actividade cognitiva, negando o insano. A afirmação do sábio remete-nos agora, por silogismo, à definição de existência apenas para quem possui.

Esta afirmação completa-se em círculo; pela conclusão de que o sábio, que afirma que nada tem, na realidade estar em rota de negação com a sua própria existência, o que confirma a tese de que o saber é, não apenas tendencialmente inútil, como uma via directa para o ostracismo, para a marginalização, para o degredo.

A sociedade ensina-nos que sem ter não haverá saber, e isso definirá a nossa permanência. O saber, que nos negaria a essência, é-nos assim fornecido a conta-gotas. Na medida exacta a permitir que continuemos a fomentar a ambição, e dessa forma levar-nos a justificar a nossa existência.

Tecidas estas considerações sumárias comigo, resta-me a imodéstia de vos confessar que não existo. O que me torna no imortal mais procurado do planeta. Sou também, por isso, o único sábio ignorante, e aqui aproximo-me do conceito antigo, mas por razões diversas...

Deixei-me a olhar inexpressivamente para o tal ponto de fuga. Afastei-me desse louco que nada tem.

Ao fundo as luzes da cidade atraíram-me como cantos de sereia. A tal cidade... Onde de tudo existe, a mesma onde nada se sabe, aquela onde tudo se conquista.

E fiquei a pensar, numa ambição antiga... Se ao menos tivesse juízo...

© CybeRider - 2009

27 comentários:

Soraia Silva disse...

Muitas vezes achamos que temos tudo, mas nao temos nada, achamos que sabemos tudo, mas nao sabemos nada...

eu so quero ter o que me pertence, eu so quero ter o que me faz feliz, tudo o resto prefiro dizer que nao tenho e se o que tenho hoje, ja nao o tiver amanha, entao nessa altura direi que nada tive, ou que "so sei que sei, que nada sabia"... do que tinha... (capriche? :P)

eu posso ter algo, logo existo, mas ao ter esse algo, apesar de existir, posso dizer que nao tenho vida (assim estarei a ser louca)...

ate podes ser um sabio ignorante (ja somos dois. quer dizer... mais uns bons quantos que desconhecemos), mas que existes, isso sim... lembro-me de ter lido à uns tempinhos atras que tinhas o teu mundo, neste caso se o tens, EXISTES :))

beijinho :)

(espero nao ter sido confusa na tua leitura, é que eu e os meus pensamentos temos uma cumplicidade de tal maneira, que cá para nós, sabemos bem o que quis dizer :P)

Anónimo disse...

és mais do que muitos têm!
ou,
tens mais do que muitos são!
ou,


olha... és um gajo do caraças, pá!



toma lá um beijo

CybeRider disse...

Olá Soraia,
Vejo que te foi bastante mais fácil desafiares este texto do que para mim subverter conceitos filosóficos com milénios. :)

Disse de facto há algum tempo que o mundo é meu. Há uma diferença entre o que somos e o que achamos que somos... Posso até ser dono do mundo, de nada me servirá se não acreditar nisso.

Um "sábio ignorante", só mesmo na cabeça de um louco... Não o disse no texto, mas depreende-se com facilidade que o sábio e o louco ocupam ali o mesmo patamar.

Talvez os desafios do mundo de hoje exijam que o sábio seja sempre louco. Então tão temido será um como o outro, sem destrinça.

Concluo este agradecimento ao teu comentário, com a ideia de que ninguém quer os loucos, como ninguém quer os sábios. A sociedade só deixará existir afinal os que puderem traduzir o seu valor medido em ouro. Estes são os que aclamamos.

(Não foste nada confusa! Gostei da tua coragem em te "chegares à frente")

Beijinho! :)

CybeRider disse...

Olá Elle!
Que bom ver-te por aqui! Assim já percebo a resposta do outro dia. :)))

(Que queres tu? Tenho dias... Nuns mais amalucado que noutros!)

Beijo para ti, pá! Gostei mesmo que aparecesses!

;)

Unknown disse...

Amalucado não tens nada . Lucidez. mais do que muitos.
Abraço

espero o proximo

Soraia Silva disse...

Pobres dos ricos, que tanto têm
P’ra que é que serve tanto dinheiro

Pois faltam sonhos, falta vontade
Falta o tempo e a liberdade

Vivem com medo de perder algo
Muita arrogância e muita ganância

Falta o tempo e a esperança
Falta a alegria e o sol da manhã

Pobres dos ricos, que sem verdade
Vivem a vida sem liberdade

Não tenho nada
Mas tenho, tenho tudo
Sou rica em sonhos
E pobre, pobre em ouro

Pois não me importa
Pois só por ter dinheiro
Não compro amigos, estrelas
Um amor verdadeiro

Eu tenho sorte, pois sendo pobre
Sobra-me tempo e tenho sonhos
"Pois tenho o mundo na minha mão
Não há tristezas nem solidão

Vem ter comigo, vamos cantar
Pois nunca é tarde para sonhar

Pois tenho todo o tempo do mundo
Porque me sobra cada segundo

Tudo o que tenho é dividido
O melhor da vida são os amigos"

(http://letras.terra.com.br/luciana-abreu/923062/)


ter por ter, mais vale a pena nao ter... é muito facil dizer que se tem, mas mais dificil é sentir que realmente se tem...
e nao falo de materialismo...

beijo :)

(fui eu que removi o comentario a cima... pus antes a versao portuguesa da cançao, que nao estava a encontrar)

CybeRider disse...

Mocho, em relação ao "amalucado" logo te digo o prognóstico no fim do jogo. :)

Também espero o próximo!

Abraço!

CybeRider disse...

Soraia, por razões óbvias acho que a Luciana não concorda contigo...

Ela começou com pouco e acabou por ficar com mais do que tinha...

(E, nem sei porquê, isto visto desta maneira não caíu lá muito bem...)

Beijinho!

Soraia Silva disse...

eu tambem pouco (mas valioso)tenho, mas se tambem quiser, consigo ter MUITO mais(ninguem tem tudo), mas...
futilidades??? futilidades dispenso (sim, porque nao estou a dizer que ela é má pessoa, apenas que tem muita futilidade isso sim)

vamos ver se ela daqui a uns anos vai ter o que tem agora (a idade começa a nao perdoar, e o que é interessante aos olhos de uns, daqui a uns tempos pode ja nao ser)


o que é que nao caiu lá muito bem hein? alguma coisa que eu disse? :P


beijinho

CybeRider disse...

Ó Soraia, o que "não caíu bem" foi o que eu disse. Que ela começou com pouco e agora tem mais do que tinha... Mas é uma pessoa, e eu dispenso-me de críticas, que ela ainda é pequenina e está a fazer pela vida, como nós. E até nem se está a dar mal (digo eu, que nada sei).

Beijinho

Milu disse...

Quão verdade é o que diz!Pouco importa o que somos, conta sim, o que "parecemos" e, mais importante ainda, o que "temos", para melhor alavancar a imagem projectada.

Sei que sou uma louca, se vista à luz da premissa que contém este texto, tenho e sempre disso tive consciência. Mas que fazer, se não existe em mim a menor réstia de ambição para lá do meu genuíno desejo em ser feliz? E para se ser feliz é forçoso que se "tenha"? Não o creio! Por muito que se possa ter, há sempre algo que nos falta e devido à essência do ser humano, esse pouco que lhe faltar chega-lhe para lhe atormentar a vida. No fundo há tanta maneira de se ser infeliz. Por exemplo: Quantas angustiadas voltas na cama é que O Figo tem dado desde que perdeu o rasto aos seus dois milhões e tal que havia investido no BPP?
Nada tenho, pois não, nem angústias destas, para me toldarem a paz. Afinal, nem tudo é mau nesta loucura.

Nirvana disse...

Cybe,
Por acaso há uma coisa que não tenho que queria muito, muito ter: mais tempo livre ;)
Esta altura do ano é sempre complicada, e agora com o trabalho e o estudante cá de casa que da escola gosta é dos intervalos, fica um pouco complicado, mas nada que não se resolva.

A confusão entre o ser e o ter não é só de hoje, e acredito que não será fácil torná-los verbos diferentes para todas as mentes. Não vou dizer que o ter não me importa nada. Estaria a mentir. Para mim é importante ter alguma segurança, ter uma vida confortável. Posso dizer, aí sem mentir, que não faço do ter a minha filosofia de vida, pelo contrário. Neste momento poderia ter muito mais, se abdicasse do tempo, que já acho pouco, que decidi dedicar ao meu filho em detrimento do trabalho. Poderia trabalhar mais horas, noutros locais e consequentemente ganhar mais e, lógico, ter mais. Mas o que tenho basta-me. Há quem me ache louca por recusar certas ofertas de trabalho, mas não me importo minimamente. O conceito de loucura é relativo, e, para mim, não sou eu a louca.
Quando penso no que tenho não penso tenho uma casa, um carro, x joias, n vestidos, quando penso no que "tenho" penso na minha família, no meu filho, nos meus amigos...

Quanto à sabedoria, aí, chego à conclusão que realmente sei muito pouco, não tanto das coisas, do que se aprende nos livros, etc, mas sim das pessoas.

E tivesse eu juízo também, Cybe :)

Um beijinho Cybe

CybeRider disse...

Bonita análise Milu!

Há um motivo para ter colocado duas personagens no meu texto, a sociedade obriga-nos a um estatuto para podermos sobreviver... Mas há uma diferença entre o que somos forçados a ser e a nossa identidade genuína. Para esta não importa ao "louco" a quantidade de ouro que a sociedade o obrigue a carregar, porque no seu íntimo será algo estigmatizante, temporário e fugaz.

Reparou que referi que o sinónimo de "louco" como "infeliz" não me é consensual. Partilho a opinião vulgarizada de que felizes serão os loucos, daí o pequeno reparo no texto.

Por isso, minha cara Milu, se conseguir exercer a sua loucura, talvez possa dizer um dia, como já tentei deixar por aqui em relação a este (permita-me que me entregue à honra do título) seu servo, que o Mundo é seu...

(Dois devaneios, entre o final de Julho e o princípio de Agosto, chamei-lhes "Ah, Bonaparte" por razões óbvias... E a partir daí todos os que contactavam comigo por aqui passaram a rodar um dedo na testa para se referirem a mim, quando não estou a olhar... Efeitos secundários, que tenho de aceitar...)

É um exercício que aconselho... A mim fez-me bem! (Acho eu...)

CybeRider disse...

Ora Nirvana, nem mais...
Em boa verdade sempre "temos" algo (O aparecimento da palavra "meus" ainda no segundo parágrafo não foi por acaso.) É isso que não nos permite usufruir da nossa loucura. :)

O "P" ainda não sabe que está genéticamente condenado? :) Tadinho, deixa-o lá gozar esse tempo lindo, que é o melhor da nossa vida. Com uma mãe como tu o futuro está-lhe mais que traçado, é incontornável, ele vai aprender a amar os livros!

(Nem imaginas a quantidade de vezes que andei de volta do meu para umas partidas de Playstation, umas voltas de bicicleta, e o tipinho a reclamar que tinha de estudar... Fui -Sou?!?!- um pai terrível!)

E consequentemente só te posso dar toda a razão na tua escolha. O tempo que possas passar com ele será sempre pouco. Quando ele ganhar as asinhas parece que nem existiu e damos connosco a agarrar as mais minúsculas recordações...

Mas adiante, que felizmente tens esta matéria mais em dia do que eu... :)

Também escreveste sobre loucura, o Gemini também, e a ti não to disse, mas disse-lho a ele, que não me podia alargar nos comentários sobre isto porque andava às voltas com o tema.
(Agora que reparo, o Gemini não tem dito nada...)

Acho que cada um a seu modo, acabamos todos por estar a olhar para um ponto de fuga lá longe...

Claro que temos juízo, Nirvana... Mas sabe tão bem fugir de vez em quando...

Beijinho!

uminuto disse...

E com o mundo neste estado é caso para perguntar: Valerá a pena termos juízo?
Gostei muito de passar por este teu espaço.

CybeRider disse...

Olá uminuto,
Sejas bem vindo a este espaço que agora também é teu.

"Tudo vale a pena quando a alma não é pequena".

Discordar do Pessoa ao recordar os actos maquiavélicos de que alguns de nós são capazes, seria uma atrocidade e uma distracção.

Prefiro a interpretação de que o que há de mau no mundo e seus ocupantes, é resultante das almas pequenas.

Às almas grandes faltar-lhes-á um pouco mais de "alma de campeão".

Obrigado pelo impulso!

Mário Rodrigues disse...

Caro amigo Cybe,
Desculpa-me. Já te li, este texto, três vezes! Mas, o ritmo desenfreado dos meus últimos dias, não me tem dado a calma para comentar, de que és indubitavelmente merecedor. Assim prefiro o não fazer. Mas fá-lo-ei. O relógio tem corrido estupidamente...

Um abraço

Milu disse...

Estive a ler os seus textos, logo, o seu pensamento. Por várias vezes o meu cérebro deu um nó, porque havia enveredado pela tentativa de justificar porque o CybeRider se sente dono do mundo. Mas pensei ser melhor não ir por aí. Afinal, eu mesma já me senti dona do mundo. Porque não falar disso, então? Foi na minha adolescência, quando estava profundamente convicta de que sozinha era capaz de mudar o mundo. Sentia-me a dona da verdade, tudo me parecia tão simples. Na minha ideia eram os adultos que complicavam tudo, por causa da sua mania - que na vida há que ter juízo e seguir todos os preceitos considerados indispensáveis, para almejar de um futuro que se adivinhe promissor. Portanto, o meu futuro era-me apresentado como a razão máxima, pela qual deveria condicionar a minha existência na Terra. Revoltei-me! Queria lá saber do futuro! Quando lá chegasse logo se veria, toldar a minha alegria, (qual cigarra), por causa do esforço de prevenir o que ainda haveria de vir, se alguma vez viesse, é que não!
Idos esses tempos, nem sempre a vida me foi fácil, sinto até, que havia e talvez ainda haja em mim, cravada nos mais profundos recônditos da minha alma, uma tendência natural para criar as minhas próprias dificuldades. O meu inferno nunca foram os outros, mas sim eu mesma, quando decidi que havia de escolher o caminho para o qual o meu instinto me conduzia e me apelava para que o trilhasse. Ainda que soubesse estar a remar contra a maré, contra o estabelecido, eu obedecia-lhe, afinal! Esta minha teima de que haveria de viver a vida à minha maneira e para a qual fora talhada, aliada à condicionante de que, para mim, nem sempre vale tudo para conseguir os meus intentos, chegou a criar-me algumas angústias ancoradas na dúvida se teria procedido bem para comigo, ao não ter dado ouvidos à "razão". Pois bem, finalmente, penso ter chegado a um ponto crucial para a minha estabilidade emocional, isto é, descobri que dificilmente teria tido outro percurso, nasci para ser assim e para ocupar este lugar no mundo, que mesmo antes de nascer já era meu. Ao diabo as recriminações, que tantas vezes fiz à minha consciência. Afinal, tenho a vida que sempre quis ter!
Por conseguinte, a consciência de que me encontrei a mim própria poderia até influir que me sentisse dona do mundo. Mas não! Não quero o mundo que é de todos, quero um só para mim, por isso meti mãos à obra e construí-o. Há um mundo, aquele que é de todos, onde só permaneço o tempo indispensável, apenas o necessário para almejar manter bem longe o espectro da indigência, só porque tem de ser e por não ter outra forma de lhe dar a volta. Aí, sou igual a toda a gente, chego até a ter os mesmos tiques. Mas, assim que me é dado sair desse mundo, entro noutro que é obra minha. E nele quase só obedeço ao meu instinto, volto a ser eu. Deste meu mundo fazem parte os meus pequenos nadas, que me dão prazer, e também,todos aqueles que amo verdadeiramente, porque os outros, os outros, não têm que lhe pertencer, para isso tenho o outro mundo que é de todos, que fiquem lá. E só assim consegui ser feliz, consegui ser igual a todos, porque há um mundo próprio para isso, mas também consegui preservar a minha identidade, continuar a ser eu na minha essência, ainda que para isso, tenha tido a urgente necessidade de criar um mundo, onde pudesse ter essa liberdade sem correr o risco de ser magoada. Talvez fique a pensar que esta minha atitude possa revelar indícios anti-sociais. Mas se, porventura, assim é, como me explica que goste tanto de comunicar, tal como estou a fazer com o CybeRider? Mas se for, pois que seja, já começa a ser tarde para me ralar com pormenores, que nada acrescentam ao meu bem-estar.
Penso que os tempos mudaram e algumas mentalidades também,está portanto na altura de se fazer um novo balanço das atitudes do ser humano e talvez haja necessidade de se estabelecerem novas leis.

Mário Rodrigues disse...

Realmente quantas vezes, não temos nada, dizemos, quando temos tanto que nem conseguimos uma explicação que nós próprios achemos plausível...
“...aquela faixa estreita onde a crença e a verdade se sobrepõem, pouco importe; porque é relativo, muito relativo...”, e tão-somente contenha as verdades desconhecidas que sopram o universo...
Não terás realmente nada? Que esperas tu ter? De que jóias se compõe a tua invejada riqueza?
Amealhar é uma arte que está vedada a muitos, pela sua cegueira de visão ampla. Possuir é uma utopia tal como a liberdade... E eu bem sei, que muito tens amealhado... a virtude sonda-te com frequência, e tu, sabiamente, vais-lhe arrancando saberes; que no entanto, voláteis que são, esvoaçam pelos mundos...
Em relação ao saber, não tenhas dúvidas, a ignorância é de longe, muito mais preservadora de estabilidade, até biológica...
Muitas vezes penso nas consequências da universalidade transversal desse saber... Não seria letal para a humanidade? Obviamente que sim...

Quanto ao louco, o que eu sou, obriga-me, verga-me perante a inevitabilidade de me abstrair do ter e do ser, pulverizando-me no espaço onde realmente eu sou feliz e me sinto em casa... a loucura...

Um abraço, meu bom amigo...

CybeRider disse...

Olá Milu!

Cheguei a ficar com inveja desse tal CybeRider que lhe mereceu a dedicação tão lisonjeira deste comentário profundo, reflectido e elaborado.

Depois percebi que o CybeRider sou eu! E de repente senti um calafrio por julgar que a Milu gostaria mais do que escrevo do que eu!

Mas comecei a ler, e as suas palavras transmitiram-me o primeiro sorriso, ao perceber que encontrou a mesma dúvida que me motivou à escrita daqueles textos. Sabia que iria suscitar invejas injustificadas, incompreensões desnecessárias. Recordo que cheguei a pensar que deveria manter aquele segredo só meu. Mas depois, coloquei o dogma (porque disso se trata) em análise como se analisa a existência de um deus, e percebi que não deveria guardar aquela teoria pecaminosa, porque a partilha de sentimentos é mais importante. A justificação não surge de um acesso de imperialismo que me leve ao exercício de qualquer poder que reivindique, nem de qualquer tentativa de subjugar os meus semelhantes, vem antes da preocupação que me resulta da observação de todas as calamidades que nos cometemos e às quais não consigo dar solução. Vem da responsabilidade de me terem dado uma vida que não posso comparar às de tantos históricos que fizeram coisas notáveis pela humanidade sem que o mundo fosse deles, e eu?... Para aqui fico a escrevinhar tonteiras e a aguardar que tudo se corrija por si. Se houvesse justiça no mundo qual seria afinal o meu lugar? Qual o tamanho da responsabilidade que me cabe para poder gozar livremente os meus direitos? Será que a minha aparente apatia me torna merecedor de alguns direitos quando à minha volta há tanto sofrimento e eu não reajo? Os direitos não têm sempre como contrapartida deveres?

Por isso Milu, não tente uma justificação para algo que talvez não a tenha... Fez bem em seguir o outro caminho, que terá sido aceitar a viagem que lhe propus.

Depois as suas palavras fizeram-me recordar essa força imensa, contida, que também senti na adolescência. O poder de mudar o mundo, senti-o tão perto... Comecei um texto em 19 de Março (dia do pai) com essa frase... Depois passaram uns anos, acabei por ter uma razão de existir, e percebi a ilusão em que vivi. Mas não deixei de acreditar que é possível.

Continuei a ler. Percebi que a Milu tem um coração grande para me entregar assim os seus pensamentos, a quem ainda tão pouco lhe deu...E observei a sua descoberta da imutabilidade de um percurso. Isso é de facto assim, como alvitrei em 15 de Abril, num texto que titulei "O especialista". Também este me sanou algumas culpas.

Congratulo-me que tenha a vida que quis. Na minha interpretação à minha, digo que tenho a que escolhi (não por querer, que não tinha essa dimensão, mas pelas escolhas que fiz). Já "a que quereria ter tido" é um exercício a que não me dou, talvez por receio do que possa descobrir.

Apreendi a sua tese de criação do seu mundo, mas compreendo-o frágil. É uma fantástica virtualização mágica, que reconheço. Um porto de abrigo insuperável, que tão bem descreve. Mas, pelo facto de ser tão bom, não teme que seja temporário e que se possa tornar decadente? Eu teria esse receio, e para vir a sofrer algum desgosto talvez prefira encarar a fealdade deste meu mundo e ter esperança. Até lá culpo-me por que tal não aconteça, por cada dia que passa em que sinto a incapacidade de o modificar. Compreendo que nunca poderei ser feliz pelo meu caminho. Mas quem disse que a felicidade é um objectivo? Estou certo que nunca saberia conviver com ela.

Reflicto ainda no conceito de "ser igual a todos"... E pelo que já lhe li, sei que não é. Reconheço-lhe, e demonstra, um carácter e uma clareza que a destacam da mediania. Esse seu pensamento é uma modéstia injustificada.

CybeRider disse...

Mário, tu deixa-te de coisas dessas comigo, pá. Eu sou o tal que nunca te há-de cobrar seja o que for. Então e as faltas que tenho lá no teu tasco? Se vamos por essa via ficamos para aqui a lamentar-nos... (Se tu soubesses... Achas que isto são horas para eu estar a responder comentários?...)

E afinal acabaste por te sacrificar para cumprires a tua palavra. E eu teria ficado mais satisfeito se não o tivesses feito. Olha que ninguém sabe melhor as contrariedades de te ausentares "dos teus" para te dedicares a isto, pá. "Eles" cobram-nos sempre! Vai por mim! E com razão, que ainda é o pior!

E que dizer das tuas tão sábias palavras?

Se tenho algo? Claro que sim! Tenho a clara noção da minha loucura. O que de facto além de me tornar mais são, também me torna menos sábio, mas que queres tu? Só aos bafejados cabe o pedestal. E eu nasci formiga, sem ambições a cigarra.

Aquele abraço, amigo Mário!

Gemini disse...

Pois é Cybe... "I begged you please" que cumprisses o prometido, e cá está ele.

Nós, os loucos, não falhamos!

Depois de te (re)ler o registo, demorei algum tempo a chegar "aqui a baixo". Houve muito "infeliz" a deixar aqui sábias palavras, que tal como fiz com as tuas, tive de absorver loucamente, enquanto descia.

Na caminhada constatei que reparaste numa ausência minha (de palavras, não de visita), e isso dá-me alegria, num porquê que entenderás!

Poderia dizer-te que "tenho" também eu andado ocupado, mas prefiro a verdade acima de tudo, e o que é facto é que têm andado ocupados comigo! (Pois se eu nada "tenho"...) (Eles ainda ousam tentar disfarçar, os transeuntes que me tentam invadir o mundo, mas bem vejo que me observam, que me estudam, a cada palavra, a cada gesto. Estarei a ficar sano?!)

Deverei elogiar este teu registo. Não só pela qualidade com que o fizeste (lugar comum aqui, não é?...), mas porque me parece a espaços que começas a conhecer-me melhor do que eu próprio.

E de tal forma me tornaram num intermediário que, ao não "ter" nada, deixo-te apenas estas palavras, que não são minhas, note-se!

Eu poderia ainda tentar outro exercício; Fingir que "tenho"! Mas no nada que (não) tenho, ou no tudo que me falta, está também incluído o jeito para o fazer. E os que hoje têm o tudo que "ontem" não tinham, antes já lhe tinham o jeito, que ao me faltar, me permite pensar-me feliz, na permanente busca da minha felicidade.

Um dia ainda hei-de "ter" alguma "coisa".

Nem que seja vontade!

Ou um abraço!

Por isso, recebe um, porque se não o receberes, este abraço nunca "terá sido" meu!

;))

uminuto disse...

Olá
De facto é um minuto no feminino.
E tens toda a razão o que conta são os elementos positivos são eles que podem fazer a diferença
Bom fim-de-semana

CybeRider disse...

Olá Gemini,
Obrigado por me aceitares no grupo sem questionares a minha competência. Isso dá-me tranquilidade. :)))

Mas não abdiques de tudo só para ficares mais sábio. Assim deixas-me com alguma intranquilidade que, como compreendes, também tenho que rejeitar por não querer possuí-la.

Olha que isto são meras teorias, e como tal, muito discutíveis.

E o abraço chegou cá sim, e retribuo-to com muito gosto!

:)

CybeRider disse...

Uminuto, agradeço do coração mais este elemento positivo. :)

Bom fim-de-semana também!

(O perdão sabe tão bem!...)

:)

Milu disse...

Demonstrou que as calamidades do mundo bastante o afligem, de tal forma, que lamenta até, não ser uma daquelas nobres personalidades que se distinguiram dos demais pela sua dedicação à causa humana e, que para mais, o fizeram abnegadamente, isto é, não se sentiram por isso, donos do mundo.

A esse respeito - ao mal do mundo - há muito que decidi contribuir zelando para que a minha conduta em nada possa contribuir para a propagação dos males sofridos, se é que isto é possível, visto que há sempre a possibilidade de algo me escapar.
Preocupo-me com a sustentabilidade do planeta, não cometendo actos que possam reverter em danos para o meio ambiente, ou em dar a mão a alguém, que dela necessite para se amparar. Mas mais nada, porque mais não posso fazer. Os males do mundo são, quanto a mim, inerentes à existência humana. Terrível, mas é o que vejo.
Se há coisas que me chocam verdadeiramente, uma delas é saber que há pessoas a morrer de fartura, por doenças causadas pelos excessos alimentares e, também aquelas, que gastam fortunas em medicamentos, tratamentos e panaceias, para combater os prejuízos causados à saúde pelo insensato desbragamento na alimentação. Enquanto outros seres humanos, desgraçadamente morrem à fome, de míngua.
Tão difícil de enfrentar!

Quando expressei que tenho a vida que quis ter, estava justamente a pensar que as minhas opções, tomadas em determinadas alturas da minha vida a isso levaram. Foi como que uma relação causa efeito: Se não gosto de uma certa coisa fujo dela, contudo procuro incessantemente tudo o que gosto. Terá sido assim que cheguei ao plano em que me encontro. Raramente fiz o que é comummente tido como recomendável, eu fiz sim, o que gostava, procurei o que gostava e evitava o que me oprimia. No fundo também são escolhas, mas aquelas para as quais o instinto me guiou e não as convenientes, tendo em conta a generalidade, ou o que a sociedade me exige. É claro que este meu exercício da liberdade, este meu livre arbítrio, valeram-me alguns dissabores, como toda a gente tive e tenho dificuldades, mas cresci o suficiente para saber lidar com elas. Só nunca quis foi encarneirar em fila. Eu é que sei o que é melhor para mim e não os outros. Trabalho, sustento-me, não faço mal a ninguém, sou livre que nem um passarinho.

Falando do meu mundo:
Achou-o frágil. É frágil, sim. Um abanão e abre-se logo um buraco. O que importa é haver força para o remendar. Também penso como o CybeRider, quando diz que poderá ser temporário, porque este meu mundo arquitectei-o eu, para melhor enfrentar as vicissitudes do meu actual dia-a-dia. Quando estamos com frio socorremos-nos de um agasalho para nos protegermos da agressividade do tempo. Pois bem, socorro-me do meu mundo para me proteger, seja lá do que for. Um dia destes,o meu mundo pode começar a afrontar-me, significará então, que já não me é necessário, porque as circunstâncias da vida se alteraram. Aí, criarei outro, mais adaptado às circunstâncias do momento. Não sei se me estou a fazer compreender, mas julgo ser uma forma de melhor me adaptar. Quanto melhor for a nossa adaptação às circunstâncias da nossa vida melhor viveremos.

Por falar em felicidade: Tinha o meu filho cerca de dois anos de idade, quando correu perigo de vida, por ter contraído meningite meningocócica. Nos primeiros dias, enquanto não soube se se salvaria, sofri atrozmente. Tinha a certeza que se perdesse o meu bebé iria ser o meu fim e, nesses momentos, pude ver o quão feliz eu tinha sido até ali. Afinal, só não somos felizes, quando temos um verdadeiro problema pela frente. A partir daí, sempre que sinto algum desânimo, ou estou mais aborrecida, muitas vezes sem uma razão válida para isso, porque é mesmo assim, parece que só estamos bem onde não estamos, lembro-me deste episódio e fico logo bem. É uma forma de dizer a mim própria: Ganha juízo.

CybeRider disse...

Olá Milu!

De facto gostaria de ser mais intreventivo no mundo. Talvez assim me pudesse convencer de que o que reclamam acerca dele não seria culpa minha. Talvez descobrisse mais gente com a minha forma de pensar, ou simplesmente chegasse à conclusão de que o errado sou eu.

Tenho dificuldade em avançar na sustentabilidade do planeta. Habituei-me a um estilo de vida que inclui o patamar do meu sustento. Muitas das coisas que faço, e que considero absolutamente incontornáveis, poluem o planeta. Utilizo o automóvel, o papel, as roupas e o calçado "convencionais". Claro que na minha vida particular reciclo segundo as indicações veiculadas pelos meios de informação, na minha empresa o papel não é todo eliminado quando deixa de fazer falta, passando a utilizar-se o verso das folhas para rascunho sempre que é possível, entre outras coisas. Mas olho para muitas das iniciativas que nos são apresentadas como "verdes" com alguma apreensão, porque lhes encontro muita hipocrisia... Afirmo sem que me doa que a espécie humana é a doença mais grave do planeta, daí que concorde com a sua afirmação. Isso é o que somos e mau seria negá-lo. Mas como qualquer doença necessitamos de encontrar outro hospedeiro para contaminar. Não sei se conseguiremos fazê-lo no prazo que nos estamos a dar para liquidar este. Isto já me incomoda. Mas talvez não bastasse reduzir o mal que estamos a causar, talvez fosse necessária uma acção mais vigorosa de começarmos a curar o que temos vindo a contaminar. Mas o mal não cura. E nós, consequentemente, talvez não tenhamos essa capacidade. Mudar a minha forma de vida seria pôr em causa a minha própria sustentabilidade, e como eu haverão milhões.

O seu exercício da liberdade é salutar. Mostra respeito por si e consideração pelos outros. Parece-me que essa será a via correcta.

E que dizer do seu mundo, se para si é a solução perfeita? Só posso achar uma opção inteligente. E a sua última frase do parágrafo de facto diz tudo, aliás só posso acrescentar que não só "melhor viveremos" como estaremos naturalmente talhados para a sobrevivência.

O episódio que ralata em relação ao filho é traumático. Se bem que ser progenitor, como sabe tão bem como eu, é andar com o "coração nas mãos" a cada momento em que eles estão longe do ninho. Haverão muitas famílias que não terão tido de se confrontar com situação tão grave como a que referiu. Congratulo-me da forma positiva como tornou essa dificuldade numa referência de vitória. Na nossa idade já passámos por muitas coisas, o dia em que tive de deixar o meu para uma estada de alguns dias no hospital para uma cirurgia abdominal, quando ele ainda não tinha um mês de vida, foi sem dúvida o pior dia da minha. Por aí adquiria ainda os novos sentidos para alguns conceitos de que já ouvira falar mas que na realidade desconhecia... Não sabia que o que pensava ser o meu sentido da vida era uma pálida amostra do que de facto hoje considero sê-lo. Não sabia o que significava dar a vida por alguém. Nesse dia que refiro teria trocado sem hesitar o meu lugar com o dele. E nunca mais deixei de pensar assim. A felicidade, que considero mais um objectivo que uma condição, é para mim o saber que ele está bem. E juízo é a condição que me imponho para que os meus actos contribuam para o seu bem-estar, e isso é por si uma condicionante a alterar padrões de vida.