quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Resplandecente

Acordei noutra dimensão.

Estendi a mão para a campainha para pedir o pequeno-almoço. Não estava lá, a campainha… Estranho… Ia jurar que…

Chamei o Bartolomeu, o meu fiel mordomo, que me recebe sempre com o meu roupão nas mãos prestáveis, aquele que costumo vestir enquanto vou até ao corredor apanhar os jornais que o Manuel, o meu motorista, costuma trazer logo cedo. Chamei de novo… Nada…

Espreitei pela janela. O jardim está todo lá. Estranho não ver o Acácio no canteiro das hortênsias. A rega não está ligada…

Dirijo-me à cozinha, por esta altura devia sentir no ar o cheiro das torradas, afinal já acordei há uns bons quinze minutos. A Catarina recebe-me sempre com um sorriso maravilhoso, e a Júlia é uma cozinheira fantástica. Mas hoje a Catarina e a Júlia também não estão ali. Que se passa?

Acordar noutra dimensão pode trazer-nos dissabores. Começo a achar que o dia me vai correr mal.

Olho para as minhas mãos. A pele está fina, as unhas brilham do verniz de ontem. Vou até ao duche, já que o dia vai ser diferente, preparo-me para a aventura.

A água quase fria sabe muito bem. Visto-me, ainda a pensar que o Bartolomeu tem sempre uma boa sugestão para me adequar as vestimentas e os atavios ao estado do tempo. Assim tenho de ter cuidado para não trocar os pares de meias, nem os sapatos. Será que esta camisa me condiz com este par de calças? Olho-me ao espelho. Pareço-me bem.

Saio. O jardim ainda cheira a manhã.

Vou à porta da garagem entreaberta. O Manuel também não está. Que aconteceu?... Começo a pensar que o Bartolomeu, o Manuel, o Acácio, a Júlia e a Catarina me estão a pregar alguma partida. Só tenho ali um carro que nem sabia que era meu. Que coisa… Começo a suspeitar que vamos ter problemas… Não me recordo de alguma vez me ter sentado num meio de transporte tão desadequado… O quê?... Não encontro o botão do ar condicionado.

Há-de haver uma explicação para tudo isto, penso enquanto vou conduzindo rua abaixo até ao quiosque dos jornais. Troco as moedas pelo jornal. Sento-me na cafetaria e peço. O pequeno-almoço, por fim; não das mãos da gentil Catarina, que me saberia melhor, bem melhor… Podia ter sido pior. Podia ter acordado cego pelo brilho do ouro. Que faria sem os meus serviçais?... Há-de haver uma explicação. Logo estarei de volta, ao padrão que tão bem conheço.

Desfolho o jornal. Quase nem reparava, no nome igual ao meu, ali, em letras garrafais. Algo aconteceu com a fábrica. E com as acções… Assembleia de credores…

Ninguém me ligou pelo telefone. Não liguei o televisor… Os meus assessores não me informaram. Demitem-se ou despeço-os?...

Não é bom acordar rico no dia em que se perdeu tudo.

Amanhã recomeço outra vez.



© CybeRider - 2009

24 comentários:

Milu disse...

Por vezes temos acordares difíceis, sentimos que é mais um dia, igual a tantos outros. Mas se um dia acordasse rica teria, acordaria também com um grande problema, isto é, teria de aprender a viver. Porque até para se ser rico é preciso saber-se ser, para não virar um traste humano, por isso se diz "nunca peças a quem pediu".

CybeRider disse...

Olá Milu!
Não me surpreende que este texto esteja pouco participado. Há um ódio natural aos ricos, e ainda há quem pense que me dedico a transcrever a realidade. O que faço quase nunca. Verifico com agrado que a Milu encontrou uma via por entre os escolhos.

O meu acordar normal é o de alguém que verifica que a fortuna acumulada no sonho desaparece ao abrir os olhos. E apraz-me conseguir acordar e desenvencilhar-me sozinho. Este sabor a vida é vedado a quem sempre teve alguém para viver por si, para trabalhar o que não trabalhámos, para nos dizer o que vestimos ou não. E a vida é tão mais que as coisas que podemos pagar...

Mas amanhã recomeço outra vez.

Gemini disse...

Olá Cybe!

Pois é... De repente tens de deixar toda a tua vida para trás porque precisas de um duche. De um pequeno-almoço, até de uma vista de olhos no jornal, para ver como vai o pesadelo!

Sinceramente, muito mesmo, não me importaria de te ser o Bartolomeu, o Acácio ou o Manuel. Todos mostram gostar de ti, a deixarem transparecer uma imagem que não trocariam os respectivos postos de trabalho por outra oferta.

Fosse esse ser o sonho deles e não o teu e ainda "aí" estariam!

Um abraço! ;))

CybeRider disse...

Olá Gemini,
Eu prefiro sem dúvida o acolhimento que me dão enquanto pobre que o abandono a que me condenam enquanto rico... (!!!)

:))))

E isto foi só uma passagem por "outra dimensão", imagina que dizia que isto era a sério!!!

Não te queiras comparar com o Bartolomeu, o Acácio ou o Manuel... Há mais dimensões...

E amanhã recomeço outra vez!
(A ver se não tenho de mudar a história...)

:)))

Abraço Gemini!

Visconde de Vila do Conde disse...

Cybe, que calafrios me causou este seu post!

(o horror, o horror...)

CybeRider disse...

Ah! Meu caro Visconde! E tanto que precisava de uma palavra de conforto... Deus afinal existe!

Afinal alguém me compreende!

Mário Rodrigues disse...

- Mas senhor! Deseja algo? Que posso fazer pelo meu amo?

Pepita Chocolate disse...

Dizias mais acima, que o post estava pouco concorrido, talvez pela aversão aos ricos... eu diria mais, que os pobres têm de trabalhar - porque não vivem de mordomias- e nem sempre há tempo, para vir dar atenção (merecida) ao começo de dia na casa de um rico... ;)

Penso muitas vezes, que é mais fácil um pobre ser rico, que um rico ser pobre. Mal lançaste o teu texto, e eu lhe lancei o olhar, sorri para mim própria; esta semana, pensei tanta vez, que os ricos não sabem sequer dar o valor ao que têm. E aos que poupam. Porque muitos dos ricos -daqueles a quem a fortuna não custou a alcançar- não sabem dar o valor ao que têm.

Dois ricos homens, um pobre e outro rico, poderão viver lado. O rico a ansiar a vida simples do pobre. O pobre ansiar com a rica vida de um rico. O pobre chegar a rico, pode perder a cabeça, é certo. Ou tornar-se avarento. Ou simplesmente, governar-se como sempre fez,e aplicar da melhor forma a sua riqueza.
Um rico homem rico, ser um pobre homem pobre,que pode ser coisa para, também, perder a cabeça, e cometer suicídio. porque, de quem muito está rodeado, todo o pouco lhe parece nenhum. O corpo e a mente estão habituados a mordomias de que já não prescindem. conseguias imaginar-te, tu sem electricidade? Ou sem combustível para o teu carro? Coisas adquiridas, que pensarás que estão sempre lá para ti!Assim será um rico, coisas adquiridas, passam a ser pormenores menores, de pouca significância. Porque se um pobre sempre tem de pensar se terá que comer ao jantar, o rico pensará o que lhe será servido para o jantar.Ou quem lho irá servir.

Quem sempre esteve habituado ao muito, dificilmente se consegue habituar ao pouco. Mas há excepções,sei que as há.

Um rico se cair em desgraça, como a desgraça que tu apontas, será abandonado rapidamente po quem o rodeia, por quem lhe lambe as botas, por quem lhe quer vestir a casaca e muitas vezes, por quem dorme com ele na cama. Porque, na maior parte das vezes, ao rico, sobejam-lhe tantos amigos, como ao pobre lhe falta o dinheiro.

Que a riqueza (ou a falta dela) muda as pessoas, lá isso muda...
e quem nasce num berço de ouro, dificilmente sabe o verdadeiro valor da riqueza.
Porque há homens ricos que não sabem a pobreza em que vivem. e haverá homens pobres que não sabem a riqueza que têm.

(mas como nunca ninguém está bem com o bem que tem... o mundo lá vai girando, com pobres a desejarem ser ricos; e ricos a não perceberem dar o valor às pequenas coisas da vida...)

Um beijinho.

uminuto disse...

Um texto muito bom. Será mesmo um dilema sermos ricos?
um beijo e bom fds

CybeRider disse...

Olá Mário!

:)))

(Como é que se diz agora?...)

Epá, curtia d'uma cena!!! Mas sabe Deus...

Mas já reparaste que a maioria acorda sem nada dessas coisas todos os dias e ainda assim almeja ser feliz?...

Amanhã recomeço outra vez (a ver se é desta...)

CybeRider disse...

Olá Pepita,
Não me inibo de acusar os toques! Mas fico com pena se não me disserem que o que escrevi não presta e optem por me deixar a falar sozinho (Estou estragado com mimos, eu sei... Mas a culpa é vossa!). E não me referi a ninguém em concreto. Que bem sei que tenho tido umas falhas com todos, que tento colmatar. (Continuo a ter mais facilidade em ler que em escrever...) :)

Concordo TANTO com o teu segundo parágrafo! Mas o que me dá uma certa tosse, mesmo, são os ricos que me falam com a mania que são pobres. E tem-me vindo à cabeça a tua frase de que "o dinheiro não é de quem o ganha, é de quem o poupa". E é uma frase muito boa. Vejo malta a esturrar dinheiro de maneiras absurdas e depois ouço-os queixar-se, sem a mínima noção das prodigalidades que vão cometendo e de como o comum dos mortais estaria a anos luz daquelas alarvidades.

Talvez seja mais fácil um rico desistir da vida, por perder tudo, que um pobre não querer continuá-la por não conseguir ganhar nada. Mas lá está: nós na nossa essência não temos posses, estas são relativizações.

Mas há pobres por opção. Serão talvez poucos. E quantos não haverá que não são tão ricos como poderiam ser porque optam por manter determinados valores que lhes são fundamentais. E se calhar neste grupo estamos quase todos - e quando me incluo é principalmente por pensar numa classe que tem a possibilidade de usufruir de um emprego e consequentes regalias sociais.

Mas amanhã recomeço outra vez.

Beijinho Pepita!

CybeRider disse...

Olá Uminuto. Essa é sempre a minha dúvida. Bons são os que leio, sofridos são os que faço. Se alguém lhes encontra alguma qualidade fico muito feliz.

E a questão é muito pertinente. Tão pertinente que, conforme já o referi, "amanhã recomeço outra vez".

Beijo, e fim de semana fantástico para ti também!

:)

Gemini disse...

CybeRider,

É "Gramava DIUMA cena"!

;)))

Gemini disse...

Cybe,

A Nirvana ofereceu-me um mimo. Sei que o consideras oferecido!


;)))

CybeRider disse...

Ena Gemini, o mundo está para ti!

:))))

E obrigado pelo mimo! (Pois, já vou sabendo como as coisas são, modernices essas também!) E tu já sabes que o que faz o meu dia são estes diálogos.

;)

Nirvana disse...

Olá, Cybe :)

A situação que descreves aqui não deve ser nada fácil. Perder tudo, perder uma vida de trabalho, como às vezes acontece não deve ser mesmo nada, nada fácil.
Falas também, nos comentários do "ódio natural aos ricos". Posso garantir que isso não tenho, mas concordo contigo que isso acontece, sim, mas geralmente proveniente de quem queria ter muito (em termos materiais falando), mas pouco faz.
Nem toda a gente nasce em berço de ouro, e muitos têm o que têm porque se esforçam por isso. Muitas vezes, na minha opinião e na minha perspectiva de vida, erradamente, dedicam-se ao trabalho, ao ter, ao acumular e esquecem que a vida é mais do que isso. Mas são opções e temos de as respeitar.
Pela minha parte, Cybe, meu amigo, nunca vou ser muito rica! Não vou dizer que o dinheiro e as coisas materiais não me interessam. Pode ser considerado futilidade, mas interessa-me. Gosto de poder comprar uma coisa que queira, gosto de fazer uma viagem se me apetecer, gosto de viver confortavelmente. E trabalho para isso. Mas não faço disso a minha vida. Podia até vir a ser rica, ter um porsche, uma casa enorme, etc. Para isso, teria de trabalhar muito mais horas, o que me traria dois problemas: ficaria sem tempo para mim e para os meus, e o trabalho, que para mim é um prazer tornar-se-ia numa obrigação, traduzida em números. Por isso, vou ficando assim, que sou muito mais feliz. E, se um dia me saísse o euro-milhões (coisa difícil porque raramente jogo), continuava a trabalhar, sem dúvida nenhuma.

"Não é bom acordar rico no dia em que se perdeu tudo". O que considero mais grave daqui é que muitas vezes essas pessoas muito muito ricas, que vivem para fabricar dinheiro e pouco mais, quando perdem isso, perdem tudo, não só o dinheiro, mas as pessoas que os rodeiam. E isso, para mim, é o mais triste de tudo.

Por isso, por cá começa-se cada novo dia com um pequeno almoço feito por mim!

Beijinhos, Cybe

mfc disse...

E há tantos a quem não lhes é permitido recomeçarem...

Mente Quase Perigosa disse...

Eu sei que sou lerda mas afinal ficaste pobre ou rico? Não percebi...

Eu sei... Eu sei... Tenho dias de verdadeira Dory...

Mente Quase Perigosa disse...

Já reli... E continuo a verdadeira Dory...

CybeRider disse...

Olá Nirvana,
E o pior é perder tudo quando não se sente habilidade para nada. O poder do dinheiro pode comprar a pretensa vida frutuosa e o destaque do topo de uma pirâmide social onde os méritos humanos são de facto muito poucos e as capacidades menos ainda. Para estes, o facto de sequer sonharem em perder "a máquina" é o maior dos pesadelos.

Este texto é uma vitualização, escrita num momento em que compreendo que a minha máquina tem pouco de artificial e automático. Para mim perder tudo o que descrevi que desapareceu à minha personagem, é apenas mais um dia igual a todos os outros (é a minha realidade), enquanto que para a personagem é um autêntico pesadelo extraído de "outra dimensão".

Mas concordo que perder tudo (considerando que o meu contexto de "tudo" está muito distante do que textualizei) é atroz.

Temos direitos aos nossos prémios! Futilidade? Nunca! Será fútil possuir um Bentley?... São medalhas que nos oferecemos e, a partir de certo nível, muito mais para favorecer a autoestima que para mostrar aos outros. Uma mala Gucci não é igual a uma imitação embora aos olhos dos outros possam não se distinguir. Mas só a genuína "satisfaz o desejo de requinte". Que reconheço, mas que sabe tanto melhor quanto maior fôr o mérito da sua conquista.

Bem, há quem consiga ficar rico a fazer o que ama. Quem me dera! Esses também quererão continuar a trabalhar ainda que lhes saia o tal sorteio. Mas também não perdem tudo quando perdem o dinheiro, porque o dinheiro é um postiço aplicado sobre a sua verdadeira personalidade, e esta sobressai e atrai por si. Esses são os verdadeiros génios.

E que bem servido com um sorriso te deve ser esse pequeno-almoço Nirvana, até por saberes que não depende senão de ti...

Beijinhos!

CybeRider disse...

Bem mfc, é por isso também que é importante que haja sempre alguém a recomeçar amanhã. Seria redutor não o fazer e deixar a coisa pelo conto do menino superprotegido.

;)

CybeRider disse...

ESTA RESPOSTA É UM "SPOILER" (Senão daqui a pouco nem eu sei o que escrevi...)
__________________________


Bolas Mente Maria! Tu de Dory não tens mesmo nada!

O texto é que é tão mais simples do que o estás a pintar. (Lamento se te desiludo... Não sou assim tão craque... eu sei...)

É que é mesmo isso! Para a personagem do texto (que sou eu, depois de acordar noutra dimensão), ficou pobre.

Já para mim... (sem "outra dimensão" nenhuma...) Nunca tive mordomo, nem jardineiro, nem motorista nem cozinheiras!...

Por isso é como se acordasse rico (substantivo), no dia em que esse rico perdeu tudo.

:)))

Sim! Acertaste!

(Mas olha que isto não tinha direito a prémios...)

Ah! Amanhã recomeço outra vez!

Soraia Silva disse...

há "ricos e ricos" e "pobres e pobres" (nao sei se me faço entender, mas é tao ovbio)...

há ricos, que sao ricos mas que sabem ter uma vida normal.
mesmo tendo excesso de coisas, sabem dar valor, sabem ajudar o proximo, nao se gabam do que têm.
há ricos que apesar de terem muito dinheiro sao uns futeis e uns inuteis... querem sempre mais e mais, gabam-se de tudo o que têm, julgam que podem falar com qualquer pessoa da maneira que bem lhe entender...

os ricos que sabem viver, conseguem ainda ter mais, porque têm quem gosta deles, apesar de terem empregadas para tudo, motorista,mordomo (etc) até com esses, acabam por se sentir pessoas de familia...

ja os outros têm a mania do conceito: "cala-te e faz que é para isso que te pago"...

nao tenho nada contra os ricos, porque para mim sao tal e qual como os pobres, o respeito é o mesmo.

há ricos que nao conseguem ser pobres, mas há tambem quem meta a mao na consciencia, e começa tudo do zero. pois esses sabem dar valor à vida dos pobres.

eu muito sinceramente nao me importava nada de ser rica, nao pelo facto de querer ter empregados, porque até nem queria, das minhas coisas gosto eu de tratar, mas pelo facto de sentir que nao estou limitada a nada...

mas de qualquer maneira rica ou pobre, seria a mesma pessoa, com os mesmos habitos...
o verdadeiro rico para mim, é aquele que ganha pelo seu esforço durante a vida, nao por aquilo que recebeu da familia, ou de forma facil (a esses apenas digo que foram herdados)...

eu nao sei se algum dia vou ser rica, mas aposto que se ainda durasse muitos anos, pelo menos sei que ficaria desafugada por muito tempo... porque rica ou pobre, gosto de poupar. o muito que tenho ou o pouco que tenho...


beijinho Cybe :)

CybeRider disse...

Soraia, houve uma menina rica a quem a professora pediu que escrevesse uma redacção sobre a pobreza.

Ela começou:
"Era uma vez uma família que era tão pobre, mas tão pobre... Que o jardineiro era pobre, o motorista era pobre, a cozinheira era pobre, o mordomo era pobre..."

Muitas vezes a realidade em que vivemos não nos deixa sentir a realidade em que os outros vivem, mesmo que nos esforcemos por imaginar.

E por vezes é preciso, parar, olhar em volta, e avaliar o que andamos a fazer para darmos sentido à nossa vida.

Beijinho Soraia!