sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A insustentável leveza do ultraje

Uma mão cerrada com força.

O estômago que se encolhe à violência das palavras: és feio!

Que diferenciação atroz, como racismo. Eu que defendo minorias, as dos pobres mais que as dos ricos, em autodefesa. Atravesso a rua pejada de hedonistas, olham-me de soslaio, de través, como quem espreita pelo cortinado de uma janela. Sigo a pensar nos meus pobres e nos dos outros. Sei que aqueles que me miram procuram explicação para a minha normalidade obscena. O cartaz da modelo seminua olha-os a eles e deixa-me mais só, à distância de uma superprodução de Hollywood, retocada, maquilhada, subconscientemente perfumada: és gordo!

Enrubesce-me um pouco a face. Começa a doer-me o punho cerrado com força. A indiferença da jovem angélica de púbis apelativa descoberta: és velho!

Chego à praça, cada passo afasta de mim a turba de pavões. Dão um passo mais para a esquerda, outros um para a direita. Carrego agora a fealdade do carrasco. Ao desbravar com tamanha facilidade o carreiro por onde sigo, a minha mão fechada é agora um machado de guerra pronto a decepar um pescoço. Cresce-me a barba no rosto hirsuto, sou discriminado no café onde me sento sozinho na minha mesa feia suja e velha. Clientes resplandecentes levantam-se e afastam-se. Pressinto que já me viram, pela janela limpinha por detrás da cortina delicada.

Se soubesse que o café me ia dar aquela vontade de urinar tinha pedido uma água. Levanto-me em busca do esgoto. Agora a meu lado um par de sapatos reluzentes, afastados, a esconderem-se na estreiteza do espaço vazio das eventuais pingas trôpegas que não o consigam transpor. Resisto.

Depois, a água fria morde-me com força. Tento abrir a mão, mas não consigo. Olho na imagem em frente, ligeiramente à direita, o tom imaculado do menino rico. Mais abaixo o relógio dourado fere-me a vista: és pobre!

Não compreendo a força com que lhe desfaço o nariz inocente. Sinto um súbito cheiro a ferro e fica tudo vermelho. Não, é afinal encarnado e gratuito. Vejo no espelho o meu reflexo e o olhar perplexo em rima a condizer; vem-me à ideia que deveria estar a ficar tudo azul. O aroma férreo intensifica-se à medida que o chão encardido se tinge, de escarlate vivo e pegajoso. Tinha-me esquecido da faca pontiaguda que ali vejo espetada num olho. Já não consigo apalpá-la na algibeira, saltou sozinha antes do grito que me teria salvado. A lâmina reluzente que afinal me condena. Doem-me os nós dos dedos, feridos, que continuam a macerar a pele macia, em recortes marmóreos eivados de rosa e púrpura, agora transformada numa massa disforme e viscosa empapada com pedacinhos brilhantes de osso esbranquiçado, dentes talvez, e o som cavado da sucessiva sucção: és assassino!

Por instantes recordo-me dos ensinamentos que pediam que me portasse bem, sempre me portei bem. Quero ser honesto e incapaz de calar verdades, naqueles minutos que antecederam a minha luta contra a justeza. Impelido pelas forças sombrias do mundo quis ser bonito, magro, jovem, rico, desejado e bom, de verdade: és mentiroso!

Tudo recalquei naquele infeliz desconhecido que jaz desfeito a meus pés: és grotesco!

Mas o real ultraje que me consuma amanhã apagará para sempre qualquer imperfeição que subsista. Perfeito é o ultrajante, e só, e feio, e gordo, e pobre, e velho; e também eu, nas vezes em que me revolto contra a vida pelos meus próprios defeitos.

© CybeRider - 2011

13 comentários:

the dear Zé disse...

pois, estás a ver como me dás razão...
(mudaste de cor e formato(?), fica bem assim)
aposto que este lençol te fez sangrar os dedos no teclado, ainda cheira ao travo a metal do sangue, de tão dorido
eu sei que é inverno, o que vale é que há 4 estações

um grande abraço

CybeRider disse...

(Finalmente dediquei-me a arrumar a casa - o outro perfil tinha sido um acidente de percurso num dia em que ia lixando isto tudo, ficou muito tempo).

Quanto à sangria, nem me digas nada, o rato ainda está para ali encolhido a um cantinho, e o teclado já me pediu uma protecção para a dentadura.

O pior ainda são os apeadeiros.

Grande abraço, Zé!

Nilredloh disse...

"Uma mão cerrada com força."
"O estômago que se encolhe à violência das palavras: és feio!"
"subconscientemente perfumada: és gordo!"
"A indiferença da jovem angélica de púbis apelativa descoberta: és velho!"
"Carrego agora a fealdade do carrasco."
"a minha mão fechada é agora um machado de guerra pronto a decepar um pescoço."
"o relógio dourado fere-me a vista: és pobre!"
"Não compreendo a força com que lhe desfaço o nariz inocente"
"Tinha-me esquecido da faca pontiaguda que ali vejo espetada num olho."
"antes do grito que me teria salvado:"
"és assassino!"
"Quero ser honesto e incapaz de"
"és mentiroso!"
"és grotesco!"

Caro CyberRider,

Este teu texto foi um dos mais enigmaticos que jamais li. Tenho esperado e desesperado que outros que porventura te conhecessem melhor do que eu comentassem. No such luck. Tenho o privilegio de te conhecer, embora so aqui dos blogs, o que ja nao e´ pouco. Penso e falo por mim, que os bloggers sao fundamentalmente solitarios. Este texto intriga-me e assusta-me. Uma das muitas ideias que me passaram pela cabeça aquando da leitura deste texto: estas sinceramente arrependido por todos os crimes que cometeste imaginariamente, nomeadamente, literariamente falando. 2) estas arrependido por todos quantos mataste em Auschwitz, em 1944... 3)sofres tanto com tanta coisa mal que te sentes culpado... e´ isso?

Um abraço com toda a amizade,

Jorge

Nilredloh disse...

O que eu acabei de dizer foi algo entre a demonstraçao por absurdo e alguma tentativa de humor... mas penso que es uma pessoa boa e muito sensivel, que sofre imenso com as injustiças e nao so sociais (que ja nao sao poucas). Os assassinos declaram-se inocentes e os inocentes declaram-se culpados? Ou nao ha inocentes? Eu, com umas canecas de cerveja (hehe tudo e´ pretexto!;) tinha aqui uma noitada de inicio de conversa contigo noite fora!

CybeRider disse...

Olá, Jorge!

(Vou tentar o dois em um) :)

Ultraje... Há quanto tempo não ouves esta palavra? Construímos à nossa volta uma couraça que pretensamente nos protege e nos constringe a uma eventual e desejada normalidade face às injúrias da vida. Não são colectivas, são profundamente nossas. Tornam a nossa aparente previsibilidade numa falsa imagem que distorce a nossa verdadeira essência enquanto seres absolutamente assustadores e perigosos por sermos susceptíveis das maiores tiranias e injustiças, consoante a posição social ou o simples momento em que podemos exercer toda a nossa imprevisibilidade, ou mera loucura, que todos dirão nunca ter visto, contra qualquer inocente, Ainda que isso até a nós surpreenda.

Agimos domados ao nosso carácter, às nossas normas, normalmente bons. Mas não podemos deixar de estar atentos aquilo que nos atinge, muitas vezes demasiado pequeno e insondável, dentro de nós próprios e que pode desencadear tormentas imensas e acutilantes. Podem ser pequenas injustiças que parecem alimentar o nosso ego em certas ocasiões, ou tornar-se em absolutos feitos catastróficos que nos afastam do que consideramos viável e humano. Não me sinto culpado pela injúria que a vida impõe a cada um, nem pelo que Hitler, injuriado com algo de incompreensível se terá revoltado dentro de si próprio, ao ponto do que sabemos para alimentar esse ego. Mas essa essência, perfeita porque nos guia ao ponto da eventual insanidade existe e espreita, ou mal nenhum viria alguma vez ao mundo.

Mas folgo em ver que absorveste as vibrações certas dessas cores que besuntei, sem sucesso. A tua perspicácia ultrapassou a minha falta de jeito. Mas este insucesso não me injuria, vou continuar a tentar vender outros peixes, nem sempre frescos, mas que me permitem nestes momentos a mesma boa sensação de partilharmos umas dessas loiras frescas num serão qualquer a preceito.

Grande abraço, meu amigo, e fica atento a essa perfeição que nos isola e nos faz procurar as sombras para nos escondermos. Pelo meu lado quero continuar a aprender a lidar com o que de imperfeito a vida me ofereça.

Nilredloh disse...

Caro CyberRider,

O unico insucesso do teu texto foi o da sua originalidade e o de obrigar o leitor a pensar.

Um abraço, com toda a amizade,

Jorge

Nilredloh disse...

1. Essa ess^^encia perfeita de que falas n~~ao sera´o Id freudiano, o velho inconsciente, que se considera imortal e que nunca aceitara´ ordens que nao sejam genericas?

2. Quanto a "ultrage": e´ verdade, a palavra esta´ "fora de uso". Eu nao tinha reparado nisso.

Um abraço,

Jorge

Nilredloh disse...

ERRO de teclar e cansaço: o Id ou inconsciente de Freud nunca aceitara ordens que nao sejam GENETICAS.

Um grande abraço,

Jorge

CybeRider disse...

Olá, Jorge!
Há uma diferença fundamental entre a resposta do inconsciente que Freud considera e aquilo que refiro que são incorporações devidas à erosão a que a vida nos sujeita. Por outro lado a essência imortal é algo que repudio, embora tenha de aceitar que ela exista enquanto existir humanidade, por ser um denominador comum a todos. A forma como a vida nos vai cerceando as capacidades, e a maneira como incorporamos o que interpretamos, pouco tem de genético, como não terá a imagem que criamos do que somos na sociedade. Seremos eventualmente os únicos animais que se auto depreciam inconscientemente, mas isso é pouco para considerar que esse facto seja genético, antes motivado pelo elevado grau de sociabilização que atingimos. Os adjectivos que escolhi visam esse afastamento, são principalmente juízos de valor que apontam definições sociais, mais que defeitos congénitos. Duvido que o bom-selvagem de Rousseau algum dia se considerasse feio, gordo, velho (idoso talvez - mas não descartável), pobre, assassino, mentiroso ou grotesco.

O conceito de mentalidade inconsciente é controverso, no entanto se referes Freud, talvez estejamos no campo que ele aponta como lacunas de auto-descrição, que a mente tenta preencher para definir a identidade. No entanto a divisão entre Id e ego, leva-me a procurar explicação em Sartre e a trazer à baila o mecanismo de censura, sempre é mais fácil... Tentei fugir a diferenças académicas, preferia uma mera constatação e não uma aventura psicanalítica, mais poesia que ciência, porque não sou cientista. Acho porém que devemos reavaliar o conceito de proto-pessoa e reduzi-lo a uma linha muito estreita, talvez a menos que um macaco. Não sei se Freud, Sartre, Kant, Schopenhaur, Marx ou Bakunin teriam um blogue na internet. Mas tento que as minhas tolices ofendam mais depressa.

Grande abraço, Jorge

Nilredloh disse...

Caro CyberRider,

O incosciente de Freud considera-se, segundo Freud, imortal. Mas morrendo o seu dono, morre o inconsciente também! Considera-se imortal mas não é. No entanto será daí que vem a fome insaciável que temos, no estado de saúde mental, de viver, mesmo aos 111 anos de vida.

Um grande abraço, com toda a amizade, do

Jorge

CybeRider disse...

Jorge,
A biologização da alma é como o sexo dos anjos. É um lodaçal que cada um terá de resolver a seu jeito. :)

Grande abraço,

Mário Rodrigues disse...

As circunstâncias já me fizeram passar de cordeiro a lobo, de vítima a vilão e de orgulhoso a desprezível. Repetem-se as sensações de chegar tarde; deste filme não cabe na minha película; porreiro pá, mas é para os outros!... Não gosto deles, tento-me convencer de que os abomino mas não tenho a certeza de que eles sejam defeitos. E se forem instrumentos, como martelos, afiados machados ou pétalas macias, apenas com os quais me vou esgueirando de fundo dos esmagamentos dos outros? E, se de repente, considerássemos que estamos a competir uns com os outros, tão-somente, por uma sobrevivência planeada por outrem, mas mantida pela nossa crueldade ou apenas medo de inexistir...

Um abraço

CybeRider disse...

Meu bom amigo,
Ouvi dizer que o Sapiens Sapiens se mantém inalterado desde há, no mínimo, 10.000 anos. As variações desta altura a 40.000 anos (do homem de Cro_Magnon) são principalmente de robustez estrutural, mais que de dimensão de cérebro. Isto significa que temos um passado muito longínquo de aptidão para viver no mundo em que estamos, ou apenas que este mundo é demasiado estranho para estarmos preocupados com os defeitos dos outros. O homem de há 10.000 anos já nascia com a mesma capacidade de enfrentar tudo o que enfrentamos hoje, e nós nascemos hoje com a mesma capacidade genética de enfrentar aquele mundo agreste. Somos uma espécie perigosa, domada pela sociedade, mas a justiça desta nada tem a ver com o mecanismo que nos gera impulsos. Só agora a justiça se preocupa por avaliar a psicologia do momento do crime, mas o que nos comanda continua a ser principalmente este cérebro misterioso, capaz de leituras estarrecedoras do mundo que nos rodeia, capaz de ver inimigos onde outros vêem circunstâncias e defeitos no que para tantos são qualidades. A formulação destas imagens individuais é difícil de conter por meras normas ditadas à margem da sua essência. Talvez a loucura seja um estado tão natural como a própria sede, à espera do "click" que a desperta. O louco não compete. Para si próprio ele é sempre magnânimo e as competições são coisa alheia em que ele não se adequa (se perder) e que lhe são inferiores (quando ganha). E "de são e de louco..."

Um abraço, Mário