segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Puro fanatismo

Outro dia, outras gentes.

No meio dos outros que variam e derivam à minha volta faço muitas vezes os mesmos percursos. Mesmo as grandes superfícies acabam por ser tradicionais, neste meio-termo de cidadezinha de província em que a minha se torna de Inverno. Já conheço a maioria daqueles que me fanatizam, talvez, sem saberem que afinal sou eu que sou fã deles. Se soubessem o quanto custa arrancar-me aquele sorriso que lhes entrego de graça, saberiam como preciso deles para manter a minha sanidade. Saberiam que são saudades verdadeiras o que sinto quando passo pelas duas tabacarias, pela farmácia, pelos dois supermercados, estes quase iguais, mas com caras diferentes às caixas que ocupam, essas pessoas de quem preciso.

Gosto de pensar que me fanatizam quando me perguntam se quero o habitual. O habitual sorriso deles, a afagar-me a alma, quero. O habitual meio-minuto de olhar terno, quero. O habitual olá-então-está-bom, quero. De saco meio-cheio das habituais coisas boas, acabo por pegar também no pacotinho de tabaco e lá venho feliz da vida, mantendo por minutos o sorriso daquela menina loira, estrangeira, linda, com o seu sotaque na voz doce, como um beijo que eu talvez não mereça, mas que me concede; privilégio que a família, lá a milhares de quilómetros, não tem. Ou da patroa, que me viu poucas vezes mas que me trata por seu querido, como se vivesse ali comigo um minuto de um romance intenso sem se preocupar com eventuais ciúmes do marido, que respeito por mim e por ele sem conhecer, palavras que ouço já sem embaraço mas que estimo pela teatralidade que me impele para uma personagem de outra história, como se fossemos ainda dois adolescentes belos a partilhar um segredo, eu e ela, e sonhos que ainda pudéssemos ter por concretizar.

Não sei resistir à loucura álacre destes estímulos que viciam. É sempre inebriado que acabo as compras, sem querer saber ao certo se eles irão dali para casa, ou para os copos com os amigos, como posso ir eu. Para mim eles pertencem ali, cada um no seu quadradinho, eternos e absolutos. Desde a gordinha mais eficiente e simpática que um estabelecimento comercial pode desejar, que com um profissionalismo exemplar e uma inteligência no olhar que nos trespassa, me enche os sacos de plástico com as compras enquanto procuro as moeditas para a quantia certa no fundo meio roto da carteira, sem saber ao certo se aquela que me salvaria a honra de consumidor exemplar não terá já executado a sua fuga premeditada; ao rapaz de cabelo à moicano que insiste em separar sempre o saco dos detergentes do dos produtos alimentares e que executa as contas a uma velocidade assaz alucinante. Sim, escolho-os pela aptidão que me satisfaz no momento, ou às vezes só por uma estranha saudade, mesmo quando a tabacaria esgota o tal tabaco e tenho de levar do outro, ou ainda que tenha de passar o dobro do tempo na fila. Fanatismo é isso mesmo, ainda que quem não o sinta possa não compreender.

Se eles verdadeiramente me fanatizassem a mim um pouco, só um pouquinho que fosse, talvez pudessem imaginar tudo o que sinto por todos eles…


© CybeRider - 2011

14 comentários:

Nilredloh disse...

Ola CyberRider,

Escrito ascendente em Espiral de Sonho!

Um abraço, do

Jorge

vítor disse...

Isto é que é começar o ano em grande forma.
abraço!

CybeRider disse...

Olá Jorge!

Deve ter sido do Ano Novo. Mas já passa! :))))

Abraço

CybeRider disse...

Olá Vítor!

Os gajos bem se fartam de avisar: "Se conduzir não beba!", tenho de ter mais cuidado no futuro, parece que a coisa se aplica aos blogues também!

Abraço!

Mário Rodrigues disse...

Cybe,

Conto-te um segredo,

Se um dia, por infortúnio eu me visse obrigado a desaparecer para que jamais alguém me encontrasse, vestir-me-ia de mendigo e dormiria nas arcadas da minha cidade...

Nem tudo se compra, mas tudo tem preço!

Um abraço

alyia disse...

engraçada essa designação. fanatismo...
não me passaria pela cabeça chamar-lhe tal

também gosto desses "rituais" :)
tempos houve em que nem ligava muito, depois um dia descobri o prazer de dar por mim a pensar "xxxiii que saudade que eu tinha desta gente que nem conheço..." ou "caramba, pensei que nunca mais voltaria aqui..." ou "como é que eu nunca reparei neste olhar simpático?..."
e então sem sequer me aperceber, passei a prestar muito mais atenção porque afinal esse "ritual" significava que eu estava ali...

the dear Zé disse...

olha que reflexão a tua, pois, é isso, mas é sobretudo o sermos reconhecidos que fazem deles nosso, o nosso talho, a nossa farmácia, o nosso café... lugares que nos tiram do anonimato das cidades e nos aquecem como um palmadinha nas costas...

olha, e já agora um bom ano don Cyber

CybeRider disse...

Olá, Mário!

Mauzinho!

Bem sei que tiveste uma má experiência com aquela coisa da queda, e que a tua cidade é muito grande. Agora vais-me dizer que não tens locais preferidos em que quem te atende não te dê um tratamento ligeiramente preferencial, independentemente do valor do dinheiro que pagues ser igual ao de outrém que nunca viram? É claro que quanto mais (ou mais vezes) pagues talvez maior seja o sorriso. E que esses serão os mesmos que não te reconhecem nas arcadas em que te deites.

A beleza da coisa é que o fanatismo não implica simpatia nem amizade, que não desejo particularmente ter com essas pessoas que afinal também não conheço. E no entanto são-me essenciais para a minha sanidade mental, acabam por dar cor a uma pequena porção do meu dia pelo simples facto de me fazerem as coisas funcionar da forma que pretendo, sem surpresas desagradáveis, apenas porque estão no lugar certo à hora certa, exactamente onde espero que eles estejam, e isso -para mim- é deveras importante.

Um abraço

CybeRider disse...

Olá, Alya!

(Garanto-te que fui a correr pegar no dicionário!)

E sabes? Quando eles não sorriem da mesma maneira já dou comigo a pensar em voltar lá e perguntar-lhes sobre a vida. Mas ainda não cheguei a esse ponto, nunca se sabe se eles não estarão em maré de nos dar autógrafos e nos dão alguma desilusão.

São afinal pequenas estrelas que nos podem influenciar o dia, mais do que tantos que por vezes idolatramos sem nunca termos sequer encontrado, só porque gostamos do livro deles que comprámos ou da farpela que desenharam.

CybeRider disse...

Olá, the dear Zé!

Tanta coisa nossa afinal! Pois é! A essa abordagem não teria chegado.

Bom ano, Don Dear!

alyia disse...

"só porque gostamos do livro deles que comprámos ou da farpela que desenharam"
...
fizeste-me rir agora :) fizeste-me recordar aquele texto sobre herois...
e eu continuo a acreditar que herois... herois? os herois não existem, estão em cada um de nós, herois somos todos

Mário Rodrigues disse...

...estava eu agora aqui a "tridentar" o meu dentinho com o meu tridente...
;-DD

CybeRider disse...

Alyia, eu por mim raramente, mas acredito que para além de nós pouco mais há que justifique o universo. Pelo menos até ver. :)

CybeRider disse...

Mário, tu com o tridente e eu a cofiar as asinhas e a arredondar a auréola...

XDDD