terça-feira, 7 de abril de 2009

Memória de elefante

E porque a memória tem destas coisas...

Vem-me à memória uma a que gostaria de prestar homenagem.

Conhecemo-nos há muitos anos. Ele com cerca de quarenta eu com cinco ou seis. Pegou-me na pequena moeda de cinquenta centavos, daquelas brancas da República, que lhe estendi a custo, sustido pelos braços fortes do meu pai, e depositou-a numa caixinha, depois voltou-se e tocou o instrumento preso à parede.

O grande elefante indiano era uma das atracções do Jardim Zoológico de Lisboa.

Voltei lá por várias vezes. Voltei a vê-lo. Dessas vezes diria que os pequenos olhos, proporcionalmente ao corpanzil descomunal, se não me reconheceram, pelo menos souberam destrinçar-me dos que, por estranha humanidade, lhe depositavam cigarros acesos na tromba hábil. À confiança lá nos apontava a pedir que o deixássemos ganhar outro amendoim.

Entre nós um fosso intransponível, e um pequeno terreiro em que aquele imigrante à força se movia lentamente observando a multidão atónita.

Escapara da dura vida de empilhar troncos numa terra que o consideraria sagrado, para animar ali os visitantes para quem aquele era um ponto alto do dia, a troco de alguns amendoins que lhe compensavam o feito repetido diariamente, uma e outra vez.

Regressei lá com o meu filho, como o meu pai fizera comigo. O gigante tinha partido, a idade e talvez a monotonia do horizonte tinham-no levado. No seu lugar um jovem aprendiz, um elefante africano, tentava aproximar-se a custo da grandeza do antecessor.

Fiquei triste.

Mas fico também inquieto. É que apesar de ter visto tantas vezes o elefante tocar o sino, e depois de tantas pesquisas que fiz sobre o assunto afirmarem que de um sino se tratava, a minha memória teima em afirmar-me que este elefante indiano, que no seu auge só aceitava moedas brancas recusando as negras que atirava por cima do dorso, aos meus olhos de infância tocava um tubo fixo à parede que emanava o som de uma corneta, e que veio mais tarde a ser substituído por um sino. E nada me demove desta convicção profunda!

É que este pequeno detalhe, com dezenas de anos, pode ser a simples prova de que a minha memória não é, de facto, de elefante.




© CybeRider - 2009

6 comentários:

Chapa disse...

Mais importante do que o pormenor do instrumento, é o carinho retido na memória e a admiração pelo trabalhador incansável.

CybeRider disse...

Valha que, mesmo que a memória do pormenor possa não ser exacta, fique o fundamental. Bem visto!

the dear Zé disse...

Na na na, tens toda a razão! O pobre do paquiderme tinha mesmo um cornete que tocava com a tromba. De certezinha absoluta!
Do que te foste lembrar...
E lembras-te de um outro que andava pelas ruas com uma cadeiras às costas onde balouçavam miudos mais ou menos divertidos mais ou menos aterrorizados?

Fogo. obrigado pela memória. Agora fico pr`aqui a ruminar na coisa... e nos anos que se foram desde... ontem

Abraço

CybeRider disse...

Ainda bem que me acompanhaste na caçada! Cada qual é para o que nasce. Não fosses tu e essa presa oculta ter-me-ia escapado para sempre. Nunca mais me lembraria desse outro que passeava as crianças nas tais cadeiras laterais... E ainda bem que te lembras do cornete. Já pensava que estava doido. Isso ficou-se pelas memórias de alguns, porque escrito só está o sino.

Abraço

calamity jane disse...

Tb ecoam na minha memória... A corneta e a campaínha. Só não sei se uma precedeu a outra, se versa-vice...

CybeRider disse...

Olá CJ, obrigado pelo teu testemunho. É que de facto a questão da corneta não aparece em nenhum relato dos que li e já começava a pensar que era da minha imaginação. Mas não há dúvida que o bicho ficou na memória de muita gente.